1.6.09

Coleção reúne em DVD filmes seminais e raros do cinema marginal brasileiro

INÁCIO ARAÚJO e
JULIANO TOSI
Especial para o UOL

"Há sempre uma minoria nos censurando. É uma das manias brasileiras: de botar de castigo, de censurar, de marginalizar". O depoimento, longo e belíssimo, está no DVD de "Sem Essa Aranha" e é de Rogério Sganzerla: "Você não é marginal, ninguém quer ser marginal. Os melhores foram sacrificados, isso é uma evidência".



Capa de "Bang Bang", do diretor Andrea Tonacci

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Aos poucos, no entanto, um dos momentos mais ricos - e mais desconhecidos - do cinema brasileiro, o cinema dito marginal (1968/73), vai finalmente ocupando seu local de merecimento.

Neste mês chegaram às lojas e locadoras os primeiros DVD's da Coleção Cinema Marginal Brasileiro, que promete ser - pela qualidade dos filmes e por sua raridade - um dos lançamentos do ano.

No primeiro pacote, são quatros discos: "Bang Bang", de Andrea Tonacci; "Sem Essa Aranha", de Rogério Sganzerla; "Os Monstros de Babaloo", de Elyseu Visconti; e "Meteorango Kid, o Herói Intergalático", de André Luiz Oliveira.

É notável e surpreendente que estes filmes estejam disponíveis em DVD (salvo "Bang Bang", nenhum deles fora lançado nem mesmo em vídeo) e numa edição tão bem cuidada. Todos os DVD's incluem, por exemplo, também um livrete de 16 páginas com ensaios e críticas dos filmes.

Cada disco contém ainda uma série de extras preciosos. O disco com "Sem Essa Aranha" tem como bônus os curtas "A Miss e o Dinossauro" e "Histórias em Quadrinhos", além da citada entrevista com Sganzerla. O filme de Tonacci é acompanhado por dois curtas-metragens ("Olho por Olho" e "Blá Blá Blá") e uma palestra de Ismail Xavier.



Capa de "Sem Essa, Aranha", do diretor Rogério Sganzerla

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Ciclo maldito
Não deixa de ser curioso como o cinema marginal, de ciclo quase maldito, passou a ser objeto de um interesse crescente de muitos espectadores.

Na virada dos anos 1960/70, em todo caso, a cortina de fumaça em torno dos ditos cineastas marginais era especialmente densa.

De modo que, mais do que cinema marginal, muitos acreditam que seria mais correto falar em um cinema marginalizado - pelos exibidores, pela censura (que interditou e/ou cortou diversos títulos), parte da crítica e, sobretudo, pelos organismos oficiais. Muitos dos filmes do ciclo não receberam do antigo Instituto Nacional do Cinema o "certificado de qualidade" necessário para serem lançados no circuito.

É a partir daí que faz sentido falar em "cinema marginal". Isto é, o que ficou à margem da política cinematográfica oficial, que constituiu uma espécie de "não dito" de nossa cultura, em grande medida porque constituiu-se fora dos parâmetros aceitos na época, que tinham como origem ou a Vera Cruz ou o Cinema Novo. Ora, esses filmes tanto estavam fora do tipo de nacionalismo praticado pelo Cinema Novo como do "universalismo" da antiga Vera Cruz. Situavam a política não mais em seus "assuntos", mas buscavam inscrevê-la mesmo nas próprias imagens que produziam.



Capa de "Os Monstros de Babaloo", de Elyseu Visconti

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Difícil dizer até que ponto um dado influencia ou foi influenciado pelo outro, mas a onda de interesse em torno dos marginais começa com as grandes retrospectivas organizadas no Centro Cultural Banco do Brasil (a primeira, em São Paulo, em 2001). Foi a primeira vez, em muitos anos, que diversos dos filmes do ciclo foram exibidos.

Parceria no lançamento
E é Eugenio Puppo, curador da mostra, que está lançando os DVD's em parceria com a Lume Filmes (uma nova distribuidora que em pouco tempo já possui um ótimo catálogo) e apoio da Cinemateca Brasileira, onde estão depositadas as matrizes dos filmes.

Como diz Andrea Tonacci, em entrevista publicada no catálogo da mostra: "filmava-se como era possível, o nome, o rótulo 'marginal' veio depois. Tentou ser pejorativo, queria atingir mais as pessoas que os filmes, e hoje tornou-se coerente com a postura da época, declaradamente libertária".

"O Bandido da Luz Vermelha" (lançado em DVD no ano passado pela Versátil), de Sganzerla, talvez o mais emblemático e conhecido filme do ciclo, tematizava justamente o marginal como figura da revolta.

Diante da repressão, da ausência de perspectivas, do sentimento de impotência frente a forças obscuras, a alternativa marginal preconizava a transgressão: "Quem não pode fazer nada, avacalha", berrava o Luz Vermelha. Os filmes do ciclo marginal são, assim, um retrato do mal-estar no ambiente cultural e social brasileiro nos anos mais duros da ditadura.



Capa de "Meteorango Kid", de André Luiz de Oliveira

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O desejo de experimentar era outra marca dos filmes. Contra um cinema do bem-fazer e à boa técnica, era preciso opor um cinema da invenção, imperfeito e incerto, mas de uma vitalidade à toda prova. Rogério Sganzerla dizia, a respeito de um de seus filmes: "Fiz questão de filmar como não se deve filmar".

Pois o mundo não comportava mais um cinema eminentemente narrativo - ou seja, coeso e lógico. Os filmes eram propositadamente opacos, pois o mundo mesmo perdera o sentido. O fundamental era a capacidade de olhar com olhos livres. Não por acaso, o crítico Jairo Ferreira preferia definir o ciclo como o do "cinema de invenção". Experimentar o mundo, descobrir as coisas, ainda que o gosto desta revelação muitas vezes fosse amargo e nauseante.

A coleção completa terá outros oito discos lançados até o final do ano, entre eles "Lilian M, Relatório Confidencial", de Carlos Reichenbach; "Hitler III Mundo", de José Agrippino de Paula; "O Pornógrafo", de João Callegaro; e "A Margem", de Ozualdo Candeias.

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